4.10.12

Ocisão.


I

A cidade não dormiu naquele dia. Justo. Eu vestia luvas vermelhas pegajosas, e caminhava sobre o tapete espelhado que cobria a calçada das ruas de Nova York. Os holofotes me cegaram. Perguntaram onde eu havia arranjado aquelas luvas. Desejei que elas sumissem.
            A cidade não dormiu naquele dia. Me enfiaram numa sala branca e mais uma vez perguntaram sobre minhas luvas.
            - O que diabo vocês querem saber?
            Coloquei as mãos pra trás e eles me presentearam com um par de pulseiras prateadas. Não quiseram tomar minhas luvas. Me deixaram sentado naquela sala, de frente para um espelho tão verdadeiro quanto o que cobria as calçadas lá fora. Quanto tempo ainda duraria?
            Do outro lado do espelho, um homem me lançou seu sorriso doentio, com dentes velhos e coloridos pela nicotina de segunda mão que o acompanhava há dez ou vinte anos. Não era uma cor comum para um sorriso. Mas o sorriso também não era lá essas coisas. O homem tinha nos olhos uma expressão sem vida. A camisa que vestia, outrora muito branca e engomada, agora não passava de uma prova,um álibi. Uma gravata borboleta pendia aberta sob a gola desabotoada, como uma serpente que havia desistido de estrangular sua vítima. A barba por fazer deixaria o coração de muitas adolescentes batendo violentamente.
            Violência. Era isso que flutuava entre eu, o vidro e o homem do outro lado. Ele também escondia as mãos atrás do corpo. Talvez estivesse usando luvas iguais às minhas.
            Meu olhar se perdeu naquele homem. Fui buscar uma garota que morava naquela memória turva. As coisas estavam meio embaçadas por causa do uísque e da pasta de cocaína recém-ingerida, que causava uma agitação incômoda. A garota daquelas memórias era meio diferente das outras, não tinha muitas frescuras. O cabelo dela era quase sempre um marrom mal lavado, mas que ainda cintilava timidamente seus longos fios assimétricos. O corpo era aquela coisa sem graça, um branco cheio de pintas, de quase um metro e sessenta, com umas perninhas finas e um pouco tortas. O que eu mais gostava eram os olhos, que eu dizia serem amarelos-hepatite, que desbotaram até ficarem quase verdes.
            Mesmo assim, a Jennifer era bonita. Tinha um jeito meio durão que assustava os caras, e alguns até diziam que uma hora ela ia cansar dos homens e ficar só com as garotas que ela conhecia. Nessas horas eu me fingia de surdo ou acertava uns murros nesses babacas. Isso deixava a Jenny irritada na maioria das vezes, e a gente se estranhava pelas ruas até um dos dois chegar em casa. No mais, éramos bons amigos, e de vez em quando assumíamos um namoro às escondidas. Não que a gente precisasse disso, mas as coisas davam mais certo assim.
            Tive pena do cara no espelho. Ele sabia tanto quanto os policiais que o haviam jogado ali. O ar de culpa pairava em outra atmosfera, do outro lado da cidade, onde o tecido das luvas vermelhas ainda cobria o corpo de uma garota desfalecida sobre qualquer calçada.

                                                    II

Eu gostava de perder tempo odiando os amigos de Jennifer. O pior de todos era um magricela metido à melhor amigo. Ele se atrevia a me encarar ou disputar a atenção dela sempre que encontrava a gente em algum lugar da cidade. E esse sempre era coisa de todos os dias. Eu detestava esse cara. Quando ele não estava, Jennifer fazia questão de me lembrar da sua existência, do jeito como ele era ou deixava de ser e de como a amizade dele fazia bem para os problemas dela.
Perdi as contas de quantas vezes quebrei o nariz dele, ou de quanto sangue já arranquei daquele estômago vazio. Muitas vezes o deixei largado na porta da casa de Jennifer, rindo por dentro e por fora daquela figura disforme que gemia ridiculamente. E nessas tantas vezes, ela chorou copiosamente sobre o corpo inerte que mais cedo ou mais tarde acabava ressuscitando de algum jeito. Ele era uma espécie de Jesus Cristo às avessas. E era exatamente aquilo que me tirava do sério.
No fim da tarde daquele dia, descobri onde eu estava errando. Meu celular vibrou com os acordes do bom e velho Cash e o nome dela apareceu, brilhando contra o escuro das cortinas fechadas. Trocamos umas quatro ou cinco palavras. Ela queria me encontrar mais tarde num beco onde a gente costumava beber de madrugada. Nada demais, se não fosse pelo pavor incomum que engolfava sua voz.
Peguei o meu casaco preto e dei uma última olhada no espelho. Meu cabelo, mesmo limpo, continuava rebelde e sem forma, com uns fios espetados e outros caídos. A barba estava bem feita, mas o negrume fosco dos meus olhos estava estranhamente sombrio. Ou talvez fosse impressão minha. Apaguei as luzes do apartamento e saí sem trancar a porta. Eu não ia demorar.
Embaixo do meu prédio tinha um bar desses onde qualquer um é bem vindo. Comigo não era diferente. Acenei para o garçom e pedi o vinho mais barato.
- Resolveu quebrar a rotina, chefia?
Respondi com outro aceno, e talvez com um sorriso. Olhei ao redor do bar enquanto o vinho mal fermentado rasgava minha garganta. Um rosto conhecido apareceu no canto mais afastado. Lá estava ele, sozinho, tomando um uísque amarelo que mais parecia urina retirada do mictório dos fundos. Ele virava o copo e pedia mais. Os olhos dele não encontraram os meus, mas tenho certeza de que tínhamos a mesma sensação no fundo do estômago.
Tomei o resto da minha garrafa enquanto a chuva lavava os desprevenidos do lado de fora. A rua começava a se esvaziar, assim como os meus pensamentos. Meu celular tocou novamente. Esfreguei os olhos e quando comecei a falar, minha voz estava arrastada, esquisita.
- Você andou bebendo? Por que ainda não veio me buscar?
Tive que arrumar uma desculpa. Olhei para o canto do bar antes de desligar o telefone. Já não havia ninguém.

                                                  III

- Quando vi o garçom deixando a garrafa de vinho barato na mesa dele, uma certeza sobre não-sei-o-quê me atingiu com força. Virei meu último whisky e saí do bar. Ele sequer virou o rosto quando eu passei. Estava vidrado numa reprise do campeonato de futebol americano que passava na televisão.
O policial me olhava com cara de descrente. O café que fumegava da caneca dele dizia em alto e bom som “Rapaz, minha mulher e meus filhos estão me esperando em casa. Será que você pode falar a verdade de uma vez?”. Meus dedos estavam ficando dormentes.
- Posso pelo menos tirar essas algemas?
Ele fez um breve aceno para outro brutamontes que estava na porta da sala e num instante meus braços estavam livres. O sangue que cobria minhas mãos havia secado por completo e agora era de um vermelho escuro aveludado.
- Eles não estavam namorando mais. Esse cara sempre foi meio louco.  Já quebrou meu nariz umas três vezes porque a Jennifer preferia ficar comigo.
- Eu não quero saber desses romancezinhos baratos. Vocês não passam de uns marginais, uns drogados que desperdiçaram o dinheiro do papai e da mamãe.
O policial fungou alto. Acendeu um cigarro e continuou me encarando.
- Ele deixou o canivete em cima do corpo dela. Eu estava tentando ajudar.
Olhei mais uma vez para minha imagem refletida no espelho atrás do agente. Nem eu estava acreditando mais nas minhas histórias.

                                                  IV

A gente se encontrou no lugar marcado. Ela tinha um sorrisinho torto, que eu tirei com um beijo meio desesperado. Senti o corpo dela se retesar e forcei sua cintura contra a minha. Não entendi do que ela fugia. Ela precisava de mim e não dos outros. Talvez nem de si mesma. Ficar comigo era o suficiente.
Num descuido, ela se soltou e desferiu a mão contra o meu rosto. Também não entendi. Seu tom de voz era impaciente, agudo, perturbado. Eu só queria que ela ficasse a salvo do resto do mundo. Senti outro par de olhos sobre a gente. Vi aquela silhueta de camisa branca, vi o pavor nos olhos verdes, vi a boca se abrir num grito mudo. Saí correndo.
A cidade dormiu mais cedo naquele dia.

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